Não é a primeira vez que visito a Neverlândia. Mas agora vivemos um momento diferente. O país precisa de conciliação, mas é prisioneiro das muitas realidades paralelas.
Conciliação não significa ausência de discordância, luta política ou mesmo caneladas. Mas, para que o debate resulte em algo positivo, é preciso certa realidade consensual. Não sou especialista em planejamento de viagens aéreas. Mas creio que seria muito difícil conceber o tráfico planetário imaginando a Terra plana. Precisamos de pelo menos algumas verdades consensuais, como a noção da forma da Terra ou a certeza de que dois e dois são quatro.
O universo político brasileiro é dividido por um abismo cognitivo. Diante de pessoas rezando na porta dos quartéis, tentando contato com alienígenas ou mesmo cantando o hino nacional para um pneu, é fácil afirmar: vivem numa realidade alternativa. O interessante é observar que os debates bolsonaristas defendem exatamente o oposto. Diante da indiferença em relação ao drama na porta dos quartéis e às múltiplas manifestações ao longo do Brasil, afirmam: vivem numa realidade paralela.
Como são poucos os pesquisadores que frequentam as duas faces da moeda, torna-se cada vez mais difícil achar uma faixa, ainda que estreita, de senso comum. O princípio do acordo talvez possa se dar em torno do resultado das eleições. Observadores nacionais e internacionais concordam que elas foram limpas, transparentes, seguras e auditáveis.
Entre os perdedores, no entanto, há muitas dúvidas. Eles se agarram em palavras complexas, como “código-fonte”. É relativamente fácil convencer uma pessoa de que as eleições só serão reconhecidas se for divulgado o “código-fonte”. Mesmo que não tenha noção alguma do papel do código-fonte, ela se dota de um argumento irrespondível nas rodas de conversa: sem o código-fonte, não tem conversa.
Isso me lembra um dia em que nosso carro em Minas enguiçou, e um mecânico diagnosticou: é a biela. Meu querido poeta Affonso Romano passou o resto do dia saboreando aquela palavra mágica: biela.
É preciso paciência e respeito na explicação sobre o resultado das eleições. Em seguida, é importante também chegar a um consenso sobre o STF. Num hemisfério, o Supremo é considerado o herói da democracia; no outro, o vilão da democracia. A que tipo de base consensual se pode chegar aí? É necessário combater notícias falsas, mas não é possível criar um Ministério da Verdade.
O caminho é fortalecer a capacidade de as pessoas questionarem uma notícia por conta própria. Há muitas possibilidades de treinamento, e não as estamos explorando. Não é razoável insultar ministros na rua, como aconteceu em Nova York. Mas também não é razoável que ministros viajem financiados por empresa para falar de democracia em Nova York.
Se é que há interesse em conciliação, será necessário buscar o mínimo de pontos de contato para que o grande argumento seja, finalmente, aceito: ganhar ou perder as eleições é normal, e a beleza da democracia é uma eleição depois da outra. O que envenena uma força política é supor que não há caminho para alternância no processo democrático.
Em 2018, o STF era acusado de impedir a candidatura de Lula. Foi preciso uma nova eleição para superar o problema. Agora o STF é acusado de reconduzir Lula.
A única forma de superar o que consideram um problema é se fortalecer para uma nova eleição. Ao longo de quatro anos, vimos milhares morrerem pela condução criminosa da pandemia, florestas serem devastadas, a cultura murchar — e seguramos a onda. Certamente, os perdedores de agora temem uma série de erros que o governo Lula poderá cometer. Não há outro caminho, exceto segurar a onda e tentar a virada adiante.
Esse é o sentido da democracia. No clima em que vivemos, terá de ser transmitido com respeito pela dor dos perdedores. Tudo isso num clima em que é difícil distinguir fato e mentira, sobretudo porque, para muita gente, essa distinção, lamentavelmente, perdeu toda a importância.
Artigo publicado no jornal Globo em 28/11/2022