Não quero comover, emocionar, levar às lágrimas. Apenas perguntar: Que mundo é este em que 420 crianças são mortas por dia, sem que nada possamos fazer? Que mundo é este em que, entre 20 mil feridos, 7 mil são crianças? Que mundo é este em que crianças não podem dormir com o barulho das bombas, não podem brincar entre ruínas pontilhadas de corpos despedaçados?
Difícil aceitar um mundo em que não se trocam imediatamente crianças sequestradas pelo Hamas e crianças presas em Israel. Uma troca pura e simples, sem considerações aritméticas, do tipo um por um. Todas deveriam voltar para suas casas, no caso de ainda terem uma.
Alguns diriam que é ingenuidade supor que as guerras não sejam destrutivas. Sempre mataram, mutilaram e separaram entes queridos. Mas, ao longo do tempo, evoluímos. Criamos leis internacionais. A Convenção de Genebra tem quatro versões, precisamente porque não só definia crimes de guerra, como também expressava essa evolução civilizatória.
Depois dela, tivemos o Estatuto de Roma e um Tribunal Penal Internacional que alguns países como os Estados Unidos não reconhecem. Pelas leis internacionais, Putin deveria estar preso por deportar à força para a Rússia 16 mil crianças. O único tribunal permanente deveria funcionar. O presidente Lula questionou sua existência, mas não se lembra de que o Brasil assinou o tratado em 2002 e o integrou à Constituição em 2004.
Outro argumento que se usa para justificar guerras sangrentas é a defesa do Estado. Grande parte da humanidade apoia a fórmula de dois Estados independentes e pacíficos no Oriente Médio: Israel e Palestina. Mas vale a pena defender ou criar um Estado a partir do massacre de crianças? Os estrategistas não contam com a morte e mutilação infantil. Mas deveriam avaliar os traumas da guerra e da perda da infância, que definirão a personalidade dos que sobrevivem até a idade adulta. Isso significa que a guerra não está apenas produzindo violência, mas semeando violência por muitas gerações.
Algumas organizações defendem a libertação de todas as crianças e a criação de um espaço e tempo para que possam brincar em segurança. Se eu ainda ocupasse cargo público, tentaria apoiar essa possibilidade articulando contatos internacionais em parlamentos de todo o mundo. “Let the Children Play” seria o tema de uma campanha, que teria até a música de Santana como forma de divulgação.
Claro que isso não é o mesmo que um cessar-fogo. Mas de que adianta aprovar um cessar-fogo que Israel só aceitará quando quiser?
Uma campanha pelas crianças teria mais chance de abrir um pequeno espaço civilizatório numa guerra tão próxima da barbárie. E poderia também abrir uma brecha na polarização que domina o debate. Afinal, apesar do que pensam os mais radicais, nem as crianças palestinas nem as de Israel são responsáveis pelas decisões políticas.
Cada vez que ouço um porta-voz da guerra dizer que não há inocentes do outro lado, a primeira imagem que me vem à lembrança é a de milhões de crianças que não escolheram a tragédia, apenas nasceram dentro dela.
Crianças precisam de oxigênio nos hospitais de Gaza, e as máquinas dependem de geradores, que, por sua vez, dependem de combustível. Por que não deixar entrar o combustível? Apenas porque o Hamas pode roubá-lo? Que peso teriam na guerra alguns litros que poderiam salvar tantas vidas que acabam de vir ao mundo?
Ou o mundo reconquista um mínimo de sanidade ou será muito difícil sobreviver nele, sabendo que quase 20 crianças morrem a cada hora de guerra. Levar em conta essa realidade significa colocar pelo menos um tijolo no improvável edifício da paz.
Neste momento, algumas qualidades infantis, como a fantasia e a ingenuidade, talvez possam abrir um pequeno espaço nessa espessa couraça da guerra que a diplomacia e a articulação internacional não conseguem penetrar.
Artigo publicado no jornal O Globo em 06/11/2023