Quase toda noite vejo um filme na TV. Saí de casa para ir ao cinema apenas três vezes em quase metade de um ano. Fui generosamente recompensado. Vi “Dias perfeitos”, de Wim Wenders, “Zona de interesse”, de Jonathan Glazer, e “Ainda estou aqui”, de Walter Salles.
Sobre o filme de Wenders, escrevi um texto. “Zona de interesse” ampliou meu interesse pela obra de Martin Amis, autor do livro.
É mais difícil escrever sobre “Ainda estou aqui”. Chorei durante o filme. Lembrei-me da infância, quando levei minha avó, que mal falava português, para ver “Direito de nascer” no cinema. Ela chorou intensamente e a consolei no caminho de volta para casa, insistindo no argumento de que aquilo não existiu, era uma invenção. Os netos não poderiam me consolar agora. O filme é baseado na história real da família de Rubens Paiva, sequestrado e morto pela ditadura militar.
Lembro-me da época. A reconstituição é tão perfeita que a própria ditadura parece se desprender da tela e vir até minha poltrona com seu cheiro ácido. As janelas com grades mostrando apenas um pedaço do céu do Rio, a privada das celas com um buraco e dois sulcos desenhados no chão para que apoiássemos os pés. Chamávamos essa latrina de boi.
Foi possível sentir a nostalgia da vida praiana antes do golpe militar. A ditadura eram alguns sinais sombrios, ainda um pouco distantes da família de Rubens: um helicóptero sobrevoando a praia, um caminhão com soldados, notícia no rádio sobre o sequestro de um embaixador. Quando é levado pela polícia política, o drama se precipita. A família nunca mais soube dele, apenas recebeu um atestado de óbito, um quarto de século depois.
Esse é o núcleo da história de Eunice Paiva, transformada em livro pelo filho, o talentoso escritor Marcelo Rubens Paiva. Ele era o menino ao lado de quatro irmãs. Conduzir a família com o pai desaparecido, vivendo simultaneamente os problemas emocionais, financeiros e a própria pressão da ditadura, foi uma tarefa gigantesca. Eunice a cumpriu maravilhosamente. E Fernanda Torres a interpretou tão bem no cinema que a imagem das duas estará sempre entrelaçada.
Toda a carga daquela situação trágica foi absorvida por Eunice, que estava sempre alerta para atenuar o impacto nos filhos. Sua preocupação maternal era tão intensa que, mesmo nas masmorras da ditadura, ao encontrar a filha, ambas encapuzadas, ela procura acalmá-la:
— Tudo vai se resolver logo.
A volta do pai não se resolveria ao longo dos anos. Rubens foi morto como muitos que não participaram da luta armada e, possivelmente, foram torturados para dizer algo que não sabiam.
Há uma cena em que Eunice dá uma entrevista sobre o marido. Isso já depois de muitos anos. O fotógrafo queria uma foto familiar, com todos tristes. Eunice pede que sorriam. Era uma das maneiras que a família tinha para triunfar sobre seus algozes: todos sofreram, mas não perderam a capacidade de sorrir e fortaleceram seus vínculos afetivos.
Eunice se transformou numa advogada que defendia os direitos dos povos indígenas. A família mudou para São Paulo. No final da vida, ela sofreu de Alzheimer, mas sua memória será preservada num país em que quase nunca nos dedicamos a lembrar.
Um belo filme, roteiro premiado, boas ideias como fazer a crônica familiar usando câmeras Super 8. “Ainda estou aqui” consagra Fernanda Torres, nos dá algumas cenas de Fernanda Montenegro vivendo Eunice idosa já atingida pela doença e afirma a carreira de Walter Salles como um dos grandes cineastas da atualidade.
Rubens Paiva sonhava com um Brasil melhor e mais justo. Eunice Paiva é a expressão da excelência humana em época de grandes crises. Sua família amorosa ainda está aqui e, na verdade, é por causa desse tipo de gente que ainda estamos aqui, com inspiração para melhorar, enxugando as lágrimas, voltando a sorrir, pois o obscurantismo jamais matará o afeto e a esperança.