Mais de 1 milhão de pessoas assinaram um manifesto contra Renan Calheiros na presidência do Congresso Nacional. Movimentos como esse têm grande valor simbólico. Equivalem às manifestações modernas em que se protesta contra algo vergonhoso ou sanguinário com cartazes que dizem: “Não em meu nome”. São bons para mostrar que o País não é homogêneo e que alguns governantes tomam atitudes francamente rejeitadas por milhares de seus conterrâneos.
Em termos internacionais, isso é a notícia. Calheiros passaria em branco se fosse apenas Calheiros com seu rebanho, notas frias, bela amante e um lobista de empreiteira para pagar suas contas. Mas é um presidente do Congresso rejeitado por milhões. Uso o plural porque o manifesto tem pouco mais de uma semana de vida e muitos que rejeitam a presença dele ainda desconhecem sua existência ou ainda hesitam em manifestar sua rejeição.
O manifesto vai encontrar um poderoso muro de cinismo, com materiais impenetráveis, entre eles a crença da esquerda de que os meios justificam os fins. Essa camada é difícil de atravessar porque se mescla com uma vitimização geral. Na Venezuela, Hugo Chávez tenta convencer as pessoas de que o capitalismo e o imperialismo são uma boa razão histórica para que um ato nobre não coincida com sua legalidade.
Os textos de Lenin autorizam essa interpretação. Não creio que o PMDB precise de alguma teoria, mas Calheiros mencionou os objetivos nacionais, aos quais a ética deve ser subordinada. Estrangularemos e saquearemos, pois, em nome dos objetivos nacionais, que não foram explicitados porque servem melhor assim, numa forma altamente abstrata.
Sarney disse, em seu discurso, que a paixão pela política e pelo bem comum é maior que a paixão pela vida. Em outras palavras, ele seria capaz de morrer pelo bem comum. Imagens fora do lugar. Sarney poderia ter dito isso durante a ditadura militar, quando essa frase altissonante poderia ser posta à prova.
Sarney sabe muito bem que hoje, se quiser discutir questões de vida ou morte, deve falar com os médicos no Instituto do Coração ou outros especialistas que cuidam de sua saúde. Passou o tempo do heroísmo, porque, como dizia Brecht, o País já não necessita de heróis.
Outro componente do cinismo é supor que a maioria eleitoral dá direitos ilimitados aos ungidos pelo voto popular. Daí em diante é seguir em frente com a frase de Disraeli nos lábios: “Nunca se queixe, nunca se explique, nunca se desculpe”.
Há um amálgama de Maquiavel, Disraeli, Max Weber mal digerido, pois o sociólogo alemão considerava uma ética totalitária a pura expressão os meios justificam os fins. No fundo mesmo, a substância mais gelatinosa e agregadora da camada de cinismo é o desprezo até pela racionalização. Os fins são a riqueza pessoal, alguns imóveis em Miami, uma fazenda de gado.
Como dizia o poeta, os amigos não avisaram que havia uma revolução. E ela transformou tão radicalmente as relações que frases como a de Disraeli, preferidas como néctar da sabedoria política, se tornam cômicas e ingênuas.
Aos jovens de hoje basta dar alguns toques no computador para saberem, em minutos, tudo o que existe publicado sobre os políticos. Com uma câmera de US$ 400 é possível filmá-los com uma definição quatro vezes maior que o HD de seus televisores. O Congresso, em tempos como o nosso, está na vitrine, como aquelas mulheres do Distrito da Luz Vermelha, em Amsterdã.
Não estou comparando os políticos às prostitutas. Seria injusto para com certos políticos e prostitutas. Digo apenas que ambos estão expostos, elas física, eles virtualmente. Com a bunda de fora, muitos ainda não se deram conta de que estão na vitrine. Não pensam no futuro, na rejeição popular, nos problemas que trazem para suas próprias famílias. Alguns deles, em breve, não poderão frequentar lugares públicos nas metrópoles brasileiras. Terão de viver uma realidade separada. Seus jatinhos decolam e aterrissam discretamente, seus percursos urbanos serão feitos de helicóptero. Tornaram-se pássaros e vão flutuar na atmosfera por algum tempo, até que uma tempestade os jogue no chão enlameado.
Imagino o que pensam: nada disso nos derrota nas eleições, temos maioria . Prosseguiremos assim porque, com raros incidentes, sobrevivemos bem ao longo da década.
O que pode acontecer quando um Congresso se degrada ostensivamente em plena era da informação? A escolha de Calheiros e Alves para a direção das Casas do Congresso abre nova etapa, atenuada pelas festas do carnaval.
Já passamos por fases difíceis. Ouço algumas vozes de desespero. Mas a experiência mostrou que, nesses momentos, o importante é não desesperar, não jogar fora o Brasil com a água do banho. Pelo menos 1 milhão de pessoas pensam como nós sobre a escolha de Renan Calheiros. E elas dizem claramente com a assinatura do manifesto: não em meu nome. Há um Brasil que resiste e nele há espaço e gente suficiente para não nos sentirmos sós e pacientemente encontrarmos uma saída para o impasse.
Alguns novos países, o nosso inclusive, talvez nem tivessem 1 milhão de pessoas quando iniciaram sua trajetória para a independência. Nem havia internet.
Os brasileiros fora do País, que são quase 2 milhões, também podem ser acionados e, de lá, contribuir na campanha contra Renan. Com tantas conexões e a inteligência coletiva em cena, impossível não encontrar os meios de abalar um jovem coronel incrustado no topo de uma instituição nacional. É um problema novo que vai roubar tempo e energia, mas não a esperança. Vamos a ele, sem desânimo e, se possível, com algum humor.
Depois de eleito, Renan aparece numa foto, em Brasília, com uma espada apontada para seu pescoço. É apenas um efeito visual, desses que acontecem em solenidades militares. Do jeito que olhava a espada, imagino que comece a perceber a trapalhada em que se meteu. Precisamos ajudá-lo a compreender.
No tempo em que eu estava lá, fui o mais explícito possível: se entrega, Corisco.
Artigo publicado no Estado de São Paulo em 15/02/2013


10 Comments
Assiti, ontem, ao filme NO, sobre o plebiscito no Chile (recomendo).
A ideia da ditadura militar é que ninguém estava ligando para o plebiscito, e que o SIM já tinha ganho. A votação do NO encerreu a era Pinochet.
Acredito que Renam e companheiros (dele) acham o mesmo do Brasil. Vamos ver no que dá.
Perfeito Gabeira !!
Estou orgulhoso de ter feito parte dos assinantes e farei sempre para o bem de NOSSO BRASIL
não jogar o brasil com a água do banho: não abrir espaço pra volta de redentoras fardas, a tanto custo enfiadas de novo nos quartéis! perfeito, gabeira.
Gabeira pra presidente!!!! Ou governador…ou prefeito!!! 😀
O artigo está perfeito. eu assinei o manifesto e estou à espera do ato seguinte. Esse pulha vai continuar no comando da casa?
Gabeira, no escândalo de 2009, assim cometi um poemeto sob o título “Todos Calheiros”:
RENAN HOJE É UM POLÍTICO
MUITO MAIS CREDENCIADO
AFINAL EM NOSSO SENADO
É DE VIDRO TODO TELHADO
OS ESCÂNDALOS SE SUCEDEM
EM UM RÍTMO FRENÉTICO
POIS LÁ NÃO TEM BIGODE LIMPO
NEM PÊLO DE LOBO ASSÉPTICO
Parabéns mineiro mais carioca que conheço. Ouvi falar que pretende deixar a política e se dedicar ao jornalismo. Tirei meu Titulo aos 16 anos por sua causa, como seu eleitor peço humildemente que não deixe a política, lhe admiro muito, existem pouquíssimos políticos em quem ainda podemos acreditar, eu acredito em você, eu me orgulho de você. Queria muito lhe ver no Senado, o RJ precisa de um Senador decente. Peço apenas que não se recolha, para o que quer que você se candidatar contará com meu voto. Enfim, Feliz Aniversário, felicidades e saúde, que Deus lhe abençoe, guie, ilumine e proteja. Obrigado por tudo que ja fez por essa cidade, esse estado, esse país. Se hoje eu vivo numa democracia, se hoje a Presidente é uma civil eleita por uma eleição direta, em parte, é por merito seu, como de outros que lutaram pela democracia e por esta pátria. Obrigado, Fernando Gabeira, você é um filho que não fugiu e não foge à luta. Grande abranço!
Artigo estimulante para uma pessoa desacorçoada, como eu, com as instituições brasileiras. Juro como sonhei que o meteorito da Rússia teria caído sobre os prédios do Congresso Nacional. Tive uma noite bem dormida.
Em vias de desistir e cair fora, vou dar um tempo. Eu topo o fora Renan. “Não em meu nome”.
Em tempo: As prostitutas, ao menos, dão alguma coisa em troca. Bem ou mal, elas dão. Políticos, salvo as raras exceções, pelo contrário.
Abraços.
Texto excelente! Não precisa dizer mais nada , está tudo aí, não só para Renan, mas muitos outros dos 3 PODERES!